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Entre a realidade e a ficção

É no Centro Cultural de São Paulo que encontro Tárcio Rodrigues dos Santos, 54 anos de idade. Um homem simples, com 1,52 de altura e um andar desengonçado, diga-se de passagem, o que representa bem a sua aparência. Daquelas pessoas que não se importam muito com a opinião dos outros, o projecionista, conhecido por todos como Mãozinha, me leva até uma pequena sala para começar a entrevista. Quando aviso que vou gravar ele logo adverte que é fanho e só vai falar o que achar necessário.

Universo paralelo, Mãozinha na sala do Lima Barreto com os seus seis dedos em cada mão e pé

Nasceu na cidade de São Paulo no bairro da Penha em 1946.   Faz questão de dizer que antigamente dizia-se Penha de França. Nunca se casou e nem pensa nisso. Hoje mora sozinho no bairro Freguesia do Ó, e assim prefere, não gosta de dizer aonde vai para ninguém.

“É para ficar tranquilo”. Isso dá indícios das razões que o levaram a manter-se solteiro, “tenho muito que aproveitar”.

Respeitável público…

Começou a vida entre a alegria do circo e o fascínio pelo cinema. Com 5 anos e por vocação, sem influência da família, desempenhou a arte do malabarismo e de palhaço. Então você foi um palhaço? “Não, sou até hoje, só parei com o circo”. A partir daí, ele enumera os lugares que fizeram parte da sua história: Circo Astro, Garcia, Orlando Orfei e Circo Bandeirantes.

Ele conta que em 1976, atravessava um cabo de aço a180 metros de altura com uma barra de equilíbrio de40 metrosde comprimento. Seu maior inimigo era o vento, porque queria derrubá-lo e a queda… Se era perigoso? Ele acredita que a vida já é um perigo e precisava conquistar a platéia. “Não adianta ser um artista circense e não agradar o público”.

O circo Bandeirantes foi o último em que trabalhou. Entre lembranças boas e ruins, ele conta sobre o acordo entre o Sérgio Malandro e o circo que garantiu espetáculos de qualidade durante cinco anos até 1982, ano que sofreu um acidente. “Fui dar um salto mortal e a espia (cabo de aço para a fixação das barras de metal) escapou, a barra caiu e fui para o chão. O tombo foi tão feio que eu quase morri”. Ele ficou 90 dias em coma induzido, depois começou a terapia de recuperação, tratamento que o ex-circense relembra como parte mais difícil, mais dolorida que a própria queda que o levou ao hospital.

Mesmo depois do acidente sofrido, ele não deixou o picadeiro de lado e voltou a freqüentar o Bandeirantes, agora como circo mambembe, circo-teatro, com peças destinadas a todos os públicos e shows aos finais de semana. “Tínhamos grandes shows, Milionário e José Rico, Chitãozinho e Chororó, Zezé Di Camargo e Luciano, que antes de serem famosos iam cantar no circo, agora são famosos e nem…” Faz gesto de desdém.

Para matar as saudades, ele assiste aos espetáculos que aparecem no Centro Cultural, ou participa das viradas culturais que permitem o acesso às atrações circenses. E não é a toa que ele se considera palhaço até hoje, sua marca registrada é o “boa tarde” que ao chegar dá para a turma. “Quando chego à escada na descida para o escritório, eu grito ‘boa tarde’ a todos, e todo mundo responde, depois vou para o outro lado e faço a mesma coisa, e todo mundo dá risada, até o diretor dá risada”.

Cinema Paradiso

Apesar de tudo, o projecionista-circense revela que entre um palco e uma sala de projeção prefere o segundo, já que frequentava o circo somente nas folgas do cinema. É na cinematografia, termo que ele mesmo prefere usar, que começou a sua segunda profissão, primeiramente limpando os banheiros do cinema e depois aos 12 anos aprendeu a rodar e emendar filmes, colocar no projetor, entre outros. Na época usava projetores de carvão, o que exigia um cuidado especial para que a luz produzida permanecesse estável e não escurecesse a tela.

Sem perder o orgulho de listar os lugares pelo qual passou, ele também enumera as salas nos quais exerceu a função: Cine São Geraldo, Penharama, Cine Júpiter, Cinema Saturno, Penha Palace, Cine Caboclo, Cine São Sebastião, Cine Paganini, Cinemateca Brasileira e Museu da Imagem e Som na Avenida Europa. A maioria das salas de cinema em que trabalhou, segundo ele, já não existe mais ou viraram supermercados, igreja evangélica, estacionamento ou foram demolidas para dar espaço a prédios residenciais.

Nunca fez curso de projecionista, aprendeu com os técnicos e a experiência, ao longo de seus 42 anos de carreira. No Centro Cultural está há pouco mais de cinco anos, a convite do cineasta Plácido de Campos Júnior. “Quando cheguei aqui, o equipamento eu já conhecia, rodava o filme, trabalhava 16, 18, horas, sozinho”. Para ele é uma honra trabalhar no Centro Cultural, se sente respeitado, rodeado de amigos e considera um local sossegado, pois lá conheceu grandes nomes do cinema brasileiro, como Héctor Babenco, Carlos Reichenbach, Tatá Amaral e Tony Ramos.

Ele me apresenta a sala Lima Barreto, onde realiza as projeções do filmes, um lugar pequeno, escuro e silencioso. Quando não está na projeção, ele costuma ficar em seu “cantinho”, uma salinha debaixo da escada, bagunçada, na qual, ele se sente a vontade, cheia de latas de rolos de filmes e materiais de cinema.

Para os que trabalham no Centro Cultural de São Paulo, Mãozinha é um homem bem conhecido. O bombeiro Elieser de Oliveira brinca ao chamá-lo de Jurassic do cinema. Sempre disposto a conversar sobre todos os assuntos e um conhecedor que tira as dúvidas de qualquer um que queira saber mais sobre a cinematografia.

O apelido “Mãozinha”

Pergunte pelo “seu Tárcio” no Centro Cultural. A resposta será a mesma. Ou a pessoa não o conhece ou não sabe quem é, mas o Mãozinha, esse sim, todos conhecem.

O apelido foi dado por um parceiro de projeção da época do Cine São Geraldo, Paulo Gonçalves ou Pinguinha. “Todos os operadores de cinema tinham apelido”. Pinguinha o apelidou ao perceber que Mãozinha é portador de polidactilia, ou seja, tem seis dedos em cada mão e em cada pé. “Você tem seis dedos? Eu tenho, então a partir de hoje você é o Mãozinha”. Ele conta que nessa época também assistia à Família Adams e sempre via a mãozinha, um dos personagens do seriado, o que ajudou a reforçar o apelido que o segue há mais de 20 anos e não o incomoda, pois garante a sua fama.

Sem sonhos, nem esperanças…

Como algumas pessoas que não veem uma perspectiva de mudança ou melhora de vida, ele não tem sonhos. Para ele tudo é passageiro, como ele mesmo diz “Começa hoje e termina amanhã, tudo é esquecido. Tudo é passado, nada é eterno”. Mas enfatiza a necessidade de planejar a vida. “Mesmo que tudo dê errado, você pode acertar lá na frente”.

Não expressa entusiasmo em contar as aventuras que viveu. Pensou em largar o serviço no cinema. Pessimista acredita que poderia ter um presente bem pior do que a atual realidade, ou preso em uma cadeia ou em uma vala de cemitério. Agradece a Deus pelo destino que garantiu o trabalho no Centro Cultural. Apesar de me dizer que se sente tranquilo e sossegado, a insegurança pela falta de uma estabilidade profissional o incomoda, sabe que uma hora ou outra pode ficar desempregado, por não ser funcionário público.

Para ele nenhuma profissão que exerceu foi valorizada, nem no circo e nem no cinema, somente o dinheiro importa, mas ele se dá o valor. “Mesmo que o patrão não goste de você, você tem que fazer o seu melhor e não deixar que os outros o critiquem por trás”. Ele acredita que a extinção da profissão de projecionista tem data marcada daqui a 20 anos, com o avanço da tecnologia e com o cinema digital.

Finaliza deixando um recado. Pede para que as pessoas aprendam e frequentem mais o cinema, sejam eles de bairro, centro ou shopping. E sai sem dizer aonde vai.